No ano de 2018, cerca de 9,3 milhões de pessoas chegaram à linha da miséria, vivendo em pobreza extrema, segundo uma reportagem do jornal Folha de São Paulo. Essas pessoas vivem em situação de vulnerabilidade social, enfrentando inúmeros problemas dia após dia: saúde física e mental, acesso à educação e lazer, problemas financeiros e dívidas gigantescas, trabalhos exploratórios e indignos. Essas pessoas residem em locais onde o saneamento básico e tratamento de água e esgoto é escasso, e o acesso à água limpa e potável é quase zero visto os frequentes racionamentos.
No final de 2019 e início de 2020, as nações por todo o globo se depararam com o surto de um inimigo invisível, altamente contagioso e letal: o novo coronavírus, que pertence a uma grande família de vírus causadores de inúmeras doenças respiratórias. O novo vírus se tornou uma pandemia e ninguém estava preparado. Por ser uma doença viral e altamente contagiosa, o vírus se espalhou pelos países asiáticos, deixando cerca de 4 mil mortos. Os demais países do globo assistiam à devastação perplexos e o medo tornava-se cada vez mais comum. Ao decorrer do tempo, o vírus se espalha pelo território italiano, onde o número de mortos chega à 24 mil. No início de fevereiro de 2020, os Estados Unidos da América confirmam seus primeiros casos, até a data onde escrevo este texto são 80 mil mortos e 1,34 milhões de infectados.
No Brasil, o momento é difícil. Cerca de 156 mil infectados e mais de 10 mil mortes. A pandemia expôs sem nenhum carinho e zero carícias às inúmeras falhas do sistema funcional brasileiro: desigualdade social, problemas na saúde pública, a disfunção educacional, os grotescos interesses políticos e os imensos degraus de segregação. Ninguém estava preparado.
E pela leitura desse texto, você já deve ter associado automaticamente quem está sofrendo cruelmente com esta pandemia, digo isso porque o vírus não afeta todas as vidas de maneira igual. De certa forma, e conforme disse o diretor da corretora de imóveis XP, Guilherme Benchimol, o pico de contágio do novo coronavírus já passou pela classe média alta e agora afeta aqueles que não possuem estruturas de prevenção. Os pobres não possuem mecanismos para proteção, não conseguem fazer quarentena e isolamento social quando se tem mais de 100 mil habitantes ou 21 mil domicílios em uma área de 10 km², como é o exemplo de Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo. Para eles, tudo é negado: os preços do álcool em gel, máscaras e luvas estão superfaturados, com as torneiras vazias é impossível lavar as mãos, os leitos estão lotados, as unidades de terapia intensiva estão sufocadas, não há vagas no sistema público, e convenhamos, um leito no Hospital Israelita Albert Einstein em São Paulo não é muito barato.
Coloco aqui um questionamento: não seria dever do Estado zelar pela população, independente de sua condição financeira, local de residência ou profissão? Exatamente. Mas, pelo visto, o excelentíssimo presidente da república Jair Messias Bolsonaro não está preocupado. Em declarações feitas à jornalistas e apoiadores, em frente ao Palácio do Alvorada em Brasília, Jair não demonstrou preocupação séria; no dia 20 de abril de 2020, o presidente afirmou: “Eu não sou coveiro, tá certo?” Dias depois, em 28 de abril de 2020, novamente em frente ao Palácio do Alvorada, o presidente diz: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”
Ao desprezar o número de mortos e recusar o isolamento social como medida de prevenção, o ilustríssimo Jair Messias Bolsonaro assemelha-se ao primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán; se parece também com Aleksander Lukashenko, presidente de Belarus, que afirmou que tudo não passa de uma psicose; e do ditador Gurbanguly Berdymukhamedov, do Turcomenistão, que proibiu o uso da palavra coronavírus no país. Jair Bolsonaro aproxima-se da necropolítica, ou política da morte para os mais íntimos; o termo foi cunhado em 2003 pelo historiador e filósofo Achille Mbembe. A necropolítica foi desenvolvida pelo historiador a partir de análises do biopoder, soberania, Estado de exceção, tiranias e racismo, tais conceitos possuem um núcleo fundamental em Michel Foucault, Giorgio Agamben e Hannah Arendt. O filósofo camaronês afirma que a necropolítica é a materialização do estado de exceção, do biopoder e terrorismo por parte do Estado; os corpos se tornam descartáveis, e é estabelecida a decisão de quem vive e quem morre. Não há pacificação por parte daquele que exerce a soberania. Soberania que é usada como instrumento de impulsionar o poder após executar a morte; sendo assim, aqueles que proferem discursos e declarações a fim de minimizar e esconder informações ou fatos da população, com a intenção de apaziguar os embates e catástrofes, aproximam-se da política da morte.
As declarações emitidas por líderes de Estado podem se tornar declarações terroristas, causadoras de medos e incertezas para a população. As falas de querer retomar o comércio, prezando à economia e não dando valor à vida, nos mostra o quão perigoso pode ser. A questão social, científica e salvadora de vidas não é mais importante do a questão de priorizar lucros e ganhos.
Nesse sentido, sabemos que ao fazer tais declarações, o presidente da república instaura medo na população que realmente entende a magnitude do momento. No fim, talvez Bolsonaro, Lukashenko, Orbán e Berdymukhamedov que tenham medo, não de contrair o novo coronavírus, mas de serem lembrados como incapazes, obtusos e desqualificados para as funções e cargos que ocupam.
Referência bibliográficas:
*Os números de óbitos e infectados pelo novo coronavírus (Covid-19) em cada país podem ser facilmente buscados com uma rápida pesquisa ao Google;
A publicação deste conteúdo está em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Filosofia, que evocam a “percepção da integração necessária entre a filosofia e a produção científica, artística, bem como com o agir pessoal e político” enquanto uma competência necessária a ser desenvolvida pelos cursos.