A controvérsia cristã no momento político do Brasil

Os últimos anos no Brasil tem nos mostrado um cenário político extremamente polarizado. Para verificar isto na prática, basta olhar os resultados das últimas eleições presidenciais. Os dados estatísticos[1] indicam uma possível divisão de 40% dos eleitores tencionados a direita caminhando a sua extremidade, 35% direcionados a esquerda e sua extremidade e 25% da população que se diz neutra e apolítica.

A paridade entre os dois primeiros grupos demonstra que as eleições foram decididas por esta camada menor da população que se diz neutra, visto que os extremos tem o poder de levar seus candidatos ao segundo turno. Nas eleições de 2018, tivemos uma movimentação maciça dos eleitores considerados de direita que votavam nos “partidos de centro-esquerda” como o PSDB para o candidato Jair Bolsonaro do PSL. Este movimento tencionado a extrema direita foi observado em muitos países do mundo como exemplo: nossos vizinhos Colômbia e Chile.

Nesta nova onda conservadora que tomou o nosso país, é possível observar uma movimentação fervorosa da religião cristã neste movimento político. Sendo que católicos e principalmente os evangélicos tomaram partido do atual presidente da República Brasileira. A eleição de 2018, foi literalmente uma batalha campal devido a extremidade do teor político, foi possível ver que muitas amizades foram desfeitas, familiares que quebraram até antigas tradições de encontros de Natal e Ano Novo devido às divergências políticas.

O voto cristão e principalmente evangélico se deu em torno do candidato que prometia a volta ou conservação dos valores tradicionais da família e contrariedade a qualquer pauta progressista, como o aborto, legalização das drogas e etc., o slogan era bem simples e direto: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. Neste contexto, vimos diversos líderes religiosos, pastores, bispos, padres subindo aos púlpitos e solicitando voto a este determinado candidato, pois se tratava da grande mudança no país, quando não menos até diziam ser o “ungido do Senhor” para tirar a nossa nação do caos causado pelos governos anteriores e colocar o Brasil nas mãos do Senhor.

Parece que no final das contas, a maioria dos cristãos votaram em virtude do medo de uma eventual perseguição à Igreja Brasileira, caso o partido de esquerda voltasse ao poder, isso parece ser algo possível, pois quando analisamos de forma crítica os fatos e acontecimentos pré e pós-eleição, podemos encontrar diversas temáticas que indicam muitas controvérsias com o cerne do pensamento e a ética cristã.

Tendo, Jesus como o principal personagem das escrituras sagradas cristãs, o mesmo simplifica a ética cristã nas seguintes palavras: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.”[2]

Partindo desta métrica determinada pelo próprio Cristo que possui a abrangência de toda a lei e os profetas do Antigo Testamento, gostaríamos de destacar algumas controvérsias cristãs mediante este movimento político:

· Uma das principais promessas do candidato escolhido pela maioria da classe cristã, se tratava da legalização do porte de armas, um tema que é bastante controverso na discussão do dia-a-dia, debates acalorados entre defensores de ambos posicionamentos, mas que definitivamente se trata de uma temática extremamente difícil de se defender do ponto de vista cristão, visto que o amor ao próximo é o ápice da vida cristã e a arma de fogo na mão de um cidadão comum dificilmente fará o bem ao seu próximo, o próprio episódio da prisão de Jesus, mostra o mestre repreendendo seu discípulo Pedro por utilizar uma espada contra um soldado na tentativa de defender Jesus[3];

· A grande massa da campanha dizia e ainda diz que prefere o atual presidente, pois o mesmo sempre fala a verdade, não mede palavras e não se preocupa com o possível resultado destas palavras. Teríamos outro fato que seria combatido facilmente pelas escrituras cristãs, bastando se atentar às palavras de Jesus que diz que é impossível ser mal e falar coisas boas, pois a boca fala do que está cheio o coração[4], logo podemos afirmar que pessoas que falam e daí? para centenas de pessoas que estão morrendo ou à beira da morte, que homenageia torturadores, grita palavras de ódio a céu aberto, não podem ser a razão de eu determinar meu voto. Pelo contrário, qualquer cristão foi ensinado pelo apóstolo Paulo a viver uma vida moderada[5], e quando se fala de moderação, o apóstolo tem como um dos objetivos, moderação na fala, ou seja, falar a verdade, mas na hora certa e no momento certo e com amor nas palavras, pois as palavras são tão perigosas quanto armas letais.

· Muitas pessoas durante o período eleitoral e ainda hoje continuam a propagar as famosas “fake news”. Recebem uma notícia falsa e não verificam a veracidade do conteúdo e simplesmente por este ato de omissão, muitos são prejudicados e enganados. Não seria isto um ato vergonhoso de mentira e não amor ao próximo? Mediante a emergente situação vivida, principalmente neste contexto de crise sanitária do COVID-19, acredito que todas as pessoas deveriam analisar os conteúdos recebidos pelas redes sociais, antes de sair propagando mensagens de perseguição, ódio, viralizando mentiras e gerando um enorme desserviço à nossa nação.

· O cristianismo se baseia na crença monoteísta de um único Deus, sendo ele o único a ser amado e que em hipótese alguma aceita a adoração de ídolos[6]. Tratando-se sobre este tópico, algumas pessoas poderiam questionar se a adoração de ídolos está destinada apenas a imagens ou esculturas ou poderia estar ligado também a idolatria de pessoas humanas. Será que esta grande fé depositada no líder do executivo brasileiro por parte dos cristãos, não seria um tipo de idolatria? Pois mesmo mediante a diversos erros, parece que muitos não conseguem exercer um pensamento crítico sobre as práticas realizadas pelo presidente.

· As reformas realizadas por este e governos anteriores, na maioria das vezes prejudicam a vida das pessoas mais necessitadas, temos um movimento que caminha na direção da desigualdade social, já nos acostumamos com os ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres. Quando analisamos os profetas do Antigo Testamento, podemos observar que eles denunciavam os pecados dos Reis, classes sacerdotais e grandes latifundiários, exatamente pela opressão ao mais necessitados. Não seria um dos papeis da Igreja denunciar e lutar contra a opressão do governo aos mais pobres? Ou estamos vivendo uma alienação tão grande que não podemos protestar contra o “ungido do Senhor”?

· Qualquer evangélico que possui a vontade de exercer o episcopado, conhece os conselhos de Paulo a seu discípulo Timóteo. Um dos ensinamentos de Paulo a Timóteo e a todos que pretendem exercer alguma liderança na igreja é de que o bispo governe bem a sua própria casa e que tenha filhos “educados[7]”. Apesar de ser um contexto congregacional, poderíamos extrapolar a interpretação e refletirmos se o “ungido do Senhor” para o governo da nação brasileira também não deveria governar bem a sua casa e seus próprios filhos.

· Cristo nos ensina que nossas palavras devem ser sim, sim; não, não, porque o que passa disso é de procedência maligna[8]. Neste texto temos a importância daquilo que falamos e concordamos, resultando que o cristão não deveria ser homem de duas palavras, ou seja, não deveria dizer que alguém tem carta branca e depois dizer que não é bem assim, não poderia dizer que no seu governo não teria “toma lá da cá” e depois vir a negociar com o centrão.

· Poderíamos destacar diversos outros pontos que não são concordantes com aquilo que o cristianismo prega. A reflexão deste texto, tem como objetivo o despertar de uma análise crítica para a política. Será que as grandes passeatas contra a democracia, mediante a destruição dos poderes legislativos e jurídicos são gestos analisados e pensados? O pensamento político não deveria ser balizado pelas nossas emoções e paixões. Já diria, Agostinho que é necessário que a mente dotada de razão e superior as paixões devem dominar os nossos atos[9].

A escolha de um candidato e a análise política não deveria se pautar no medo, nas paixões, na gritaria e no ferver do movimento. A exposição de alguns erros relacionados ao pensamento de alguns cristãos não resulta em dizer que os outros grupos também não foram movidos sem paixão ou por algum sentimento que não seja a justiça. Talvez a reflexão madura poderia nos mostrar que a polarização não é a melhor escolha e quem sabe o segundo turno das eleições de 2022, pode ser formado por outros candidatos que não dos partidos PSL e PT. Aqui fica o apelo por uma reflexão consciente e baseada na justiça dos fatos.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/eleicoes/2018/apuracao/2turno/brasil/ , acessado em 14/05/2020.

[2] Mateus 22.37–40

[3] Mateus 26. 47–52; João 18.10,11

[4] Mateus 12.34

[5] Filipenses 4.5a

[6] Deuteronômio. 6.4; Mateus 22.37–40

[7] 1.Timóteo 3.1,4

[8] Mateus 5.37[9] AGOSTINHO, Santo Bispo de Hipona. O livre-Arbítrio, 1995, p.50


A publicação deste conteúdo está em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Filosofia, que evocam a “percepção da integração necessária entre a filosofia e a produção científica, artística, bem como com o agir pessoal e político” enquanto uma competência necessária a ser desenvolvida pelos cursos.


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